Cinegrafia recorrente
Tomo aqui o termo cinegrafia como um conjunto de recursos técnicos e operações conceituais usadas para narrar ou descrever alguma coisa em linguagem cinematográfica. Seria o correspondente ao termo iconografia como é aplicado em relação às imagens fixas e obras tridimensionais na História da Arte.
O exame do conjunto de filmes abordados nesta pesquisa deixou evidentes alguns procedimentos de linguagem fílmica e tópicos temáticos que aparecem com frequência significativa em obras de diferentes épocas e gêneros. São certos movimentos de câmera, composições de quadro, posicionamentos de atores e relações simbólicas estabelecidas entre os personagens e os cenários pós-catástrofe.
Esse tipo de recorrência acaba por configurar uma cinegrafia específica dos filmes ambientados em locações arruinadas. Em ensaio sobre o assunto, Lúcia Ramos Monteiro levanta a hipótese de uma "transferência de atmosfera catastrófica" entre Alemanha Ano Zero, de Rossellini, Deserto Vermelho, de Michelangelo Antonioni, e Em Busca da Vida, de Jia Zhang-ke. Ela aponta semelhanças de enquadramento e contrapontos de sentido entre os filmes de Rossellini e Zhang-ke. No seu entender (e na minha tradução), "os personagens humanos vivendo em Fengjie nos anos 2000 compartilham uma frágil condição próxima à de suas contrapartes na Berlim da década de 1940", indicando que "a guerra e o crescimento econômico trazem destruição."
Muitas ilações desse tipo poderiam ser feitas a partir dessa cinegrafia recorrente. Não é este exatamente o meu objetivo aqui, mas passo a comentar e exemplificar visualmente 11 elementos que chamaram minha atenção. A maioria das cenas em movimento estão sem legendas, uma vez que o interesse se concentra no plano das imagens.
1. DO ALTO SE VÊ MAIS
As tomadas aéreas permitem dimensionar rapidamente a extensão da paisagem afetada pela catástrofe. O que antes só era possível obter com o uso de aeronaves agora se banalizou com o emprego de drones.
2. A EXTENSÃO DO OLHAR
Panorâmicas e travellings horizontais e verticais simulam o olhar de um personagem ou de uma instância narradora desencarnada que percorre um quarteirão ou um fachada destruída.
3. IMAGENS EM TRÂNSITO
O deslocamento de um automóvel, um trem, uma bicicleta ou uma embarcação se presta a descortinar, em regime de continuidade, trechos de cidades ou campos destruídos. O veículo pode ser objeto do acompanhamento da câmera ou o próprio suporte que conduz o movimento. Alguns casos enquadram-se no chamado "filme de turismo de desastre".
4 . CAMINHANTE ENTRE RUÍNAS
Um personagem que caminha (ou corre) entre os escombros possibilita uma visão detalhada do cenário e coloca o ser humano em contato direto com o entorno. Esse tipo de cena costuma ter um valor de clímax dramático e se presta a leituras simbólicas como a descrita no item 6 abaixo.
5. ERRANTES SOLITÁRIOS
A presença de alguém que deambula por um cenário desabitado ou devastado pode sugerir ideias de abandono, solidão, desamparo ou mesmo loucura.
6. DESTROÇOS HUMANOS
É comum encontrarmos composições que ressaltam uma equivalência entre as ruínas materiais e o estado emocional dos personagens. Em alguns casos, uma cena de desmoronamento pode ser diretamente associada ao sentimento de alguém.
7. DIVERSÃO NOS ESCOMBROS
Para as crianças que sobreviveram, o entulho das catástrofes pode se transformar num simulacro de parque de diversões. A inocência é capaz de descobrir o lúdico onde só parece haver destruição. Esse tipo de cena também pode ganhar tinturas sombrias e trágicas, como acontece em Alemanha Ano Zero.
8. JANELAS DENTRO DE JANELAS
Rombos em paredes são valorizados como fator dramático e muitas vezes funcionam como janelas dentro do quadro, abrindo-se para outros espaços ou enquadrando determinados focos da ação. Veja a galeria de fotos (passe o cursor para ver os títulos dos filmes na parte inferior):
9. BACKGROUNDS DRAMÁTICOS
Um trecho de ruína, um monte de escombros ou um interior devastado pode constituir o fundo ideal para uma conversa, uma performance ou um portrait. Dessa forma, cena e cenário se coadunam para um efeito potencializado. Veja a galeria de fotos (passe o cursor para ver os títulos dos filmes na parte inferior):
10. A RUÍNA ILUMINADA
Filmagens noturnas em áreas arrasadas requerem iluminação artificial. Em alguns filmes, esse recurso assume um efeito de estetização das ruínas. O cenário se torna teatral, com luzes direcionadas e requintes de realce nos contornos. Veja a galeria de fotos (passe o cursor para ver os títulos dos filmes na parte inferior):
11. AS TRÜMMERFRAUEN
As "mulheres dos escombros" foram um mito alemão de orgulho e resiliência, celebrado em estátuas em várias cidades do país. Quem o contestou foi a historiadora Leonie Treber num livro de 2014. Segundo seus estudos, as mulheres foram uma minoria nos trabalhos de limpeza e, em grande parte, obrigadas a ir para as ruas. Nos filmes do pós-guerra, elas frequentemente aparecem no fundo da cena. Em Ilusão Perdida, porém, a protagonista é uma Trümmerfrau.