Europeus vão ao Líbano
O Ocaso de um Povo / Je Veux Voir
A Guerra Civil do Líbano já transcorria havia cinco anos quando uma equipe franco-alemã desembarcou em Beirute, em 1980, para filmar O Ocaso de um Povo (Die Fälschung). O roteiro, escrito a oito mãos pelo diretor Volker Schlöndorff, sua mulher Margarethe von Trotta, Jean-Claude Carrière e Kai Hermann, baseava-se em romance do alemão Nicolas Born. O ator Bruno Ganz interpreta Georg Laschen, correspondente de guerra que deixa um casamento em crise em Hamburgo e vai cobrir o conflito libanês. Homem de alma vazia, sua postura um tanto passiva contrasta tanto com a indiferença endurecida do parceiro fotógrafo (vivido pelo diretor polonês Jerzy Skolimovski), quanto com o cinismo dos colegas em relação à guerra alheia. Georg observa a exploração comercial das imagens de morte e percorre a pé as caóticas ruas da cidade em meio aos tiroteios entre cristãos e palestinos. Custa-lhe entender os valores em jogo, o que evidencia um estranho despreparo para um profissional do seu calibre.
A produção se concentrou nas áreas consideradas seguras de Beirute, mas muito próximas da atividade bélica e cheias de marcas das refregas passadas. O próprio hotel Holiday Inn, onde os jornalistas se hospedavam, já havia sido atingido por bombas. Consta que Schlöndorff e sua equipe passaram por dilemas entre filmar e ajudar pessoas em perigo. No entanto, a impressão deixada pelo filme é um tanto diferente. O uso das locações abaladas pela guerra levanta algumas questões éticas que poucos consideraram à época do lançamento.
O filme foi muito elogiado em termos logísticos, dado o realismo das cenas de batalha urbana, rodadas com a participação de combatentes e armas reais. O efeito "documental" foi obtido mediante a encenação de combates, explosões e incêndios em locais relativamente calmos da cidade, reproduzindo o que acontecia a poucos quilômetros dali. Cadáveres cenográficos eram queimados nas ruas, onde escombros reais se misturavam às adições da direção de arte. A reprodução "artística" de uma guerra no próprio cenário da guerra real é uma atitude que pode ser considerada admirável, mas também moralmente questionável. Na prática, e dentro do seu escopo de criação, O Ocaso de um Povo incorpora a visão cínica dos jornalistas ocidentais, apesar de supostamente denunciá-la.
A guerra "alheia" acaba sendo um mero pano de fundo para a crise conjugal de Georg (uma guerra doméstica), seus problemas de consciência e suas relações com outros estrangeiros. Em Beirute ele reencontra a amiga Arianna (Hannah Schygulla), agora viúva rica de um árabe. Eles têm um flerte em meio ao som dos tiros e explosões. Numa cena, jantam romanticamente e engatinham rumo à cama para fazer sexo enquanto as bombas estouram do lado de fora. Os libaneses são meros coadjuvantes num filme de alma europeia, em que, ironicamente, um protagonista alemão fica chocado perante o genocídio dos palestinos.
A visitante francesa
Outra intromissão do cinema de ficção na realidade do Líbano é o filme Je Veux Voir ("Eu quero ver", 2008), dos diretores libaneses Joana Hadjithomas e Khalil Joreige. O dispositivo é ousado: a atriz Catherine Deneuve faz o seu próprio papel numa viagem a Beirute para um jantar de gala fictício com o embaixador francês. Nas horas que antecedem o jantar, apesar dos alertas sobre os riscos da aventura, ela pede para ir ao sul do país, duramente atingido pela guerra de 2006. "Mesmo que não compreenda, eu quero ver", ela insiste. O crítico David Walsh detectou a possível origem dessa fala na peça A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht. Quando Joana anuncia sua intenção de ir às favelas de Chicago, é severamente aconselhada a não fazê-lo. Mas ela reitera: "Eu quero ver".
O cicerone de Catherine é o ator libanês Rabih Mroue, também vivendo a si mesmo. Os dois diretores os acompanham em outro veículo com a equipe de filmagem e o segurança de Catherine, todos convertidos em personagens. O road movie parte do centro de Beirute através dos subúrbios, na chave do disaster tourism. O carro reduz a marcha enquanto trafega ao lado de edifícios bombardeados, enquadrados do ponto de vista da passageira ilustre. Depois de pegarem a estrada, chegam à pequena cidade de Bint El Jbeil, onde vivia a família de Rabih até a guerra destruir grande parte do vilarejo. Seguido por Catherine, Rabih faz um périplo frustrado entre os escombros à procura da antiga casa da avó.
A viagem continua até um trecho de litoral onde os destroços das cidades bombardeadas são trazidos para separação dos metais e trituração das pedras e rebocos, que serão depositados no mar. O travelling automobilístico por esse cemitério de escombros é uma sequência poderosa, pontuada pela voz de Rabih a lamentar o fim de tantas moradias: "Você esta vendo? Já não se pode mais distinguir a sala do corredor, a cozinha do hall de entrada, os quartos dos banheiros. São só pedras misturadas" (veja a cena em Cinegrafia recorrente).
Je Veux Voir: o cemitério de escombros
O teor de improvisação e risco é evidente em diversos momentos. Enquanto caminham por um subúrbio dilacerado de Beirute, os atores têm que interromper duas vezes uma cena por conta da interdição de filmar alguns edifícios. Mais adiante, Rabih toma uma estrada vicinal e é instado a parar o carro por se tratar de um caminho possivelmente tomado por minas terrestres. Ao chegarem na fronteira com Israel, a equipe precisa negociar autorização para filmar no local.
Estamos, assim, um pouco além do limiar entre a ficção e o documentário. Joana e Khalil mobilizam Catherine Deneuve, um ícone do cinema mundial, e Rabih Mroue, um ícone do cinema libanês, para mostrar ao mundo os efeitos das guerras sucessivas que se abateram sobre o Líbano. Mas não da mesma forma como as televisões sempre mostraram aquelas imagens, e sim com o envolvimento emocional de alguém que sofreu as tragédias de seu país e de uma visitante aberta à empatia.
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