Ruínas e afetos na Bósnia
O Cículo Perfeito / Bem-vindo a Sarajevo / Pedra Bruta
Objeto de inúmeros livros, filmes, peças de teatro e performances políticas, a Guerra da Bósnia-Herzegóvina (1992-1995) deixou um rastro de mais de 100 mil mortos e 2,2 milhões de pessoas que tiveram de abandonar suas casas. A comoção e indignação mundiais com a guerra fratricida, o genocídio executado pelos sérvios e a inércia da comunidade internacional estiveram no centro dramatúrgico de muitas obras. Tomo aqui três filmes que encararam o assunto de frente e fizeram uso ostensivo da paisagem resultante dos combates e bombardeios.
O Círculo Perfeito (Savrseni Krug, 1997) foi o primeiro filme bósnio a ser concluído após a assinatura do Acordo de Paz de Dayton e o encerramento formal da guerra. Assim, passou à história como o título inaugural da filmografia da atual Bósnia e Herzegóvina. No início do conflito, o diretor Ademir Kenović refugiou-se por quatro meses no famoso Hotel Holiday Inn de Sarajevo, onde se hospedavam os correspondentes de guerra, para escrever o roteiro com Pjer Zalica. Em fevereiro de 1996, apenas três meses depois do cessar-fogo, contando com autorização das Nações Unidas, iniciou as filmagens com a cidade ainda praticamente fumegante.
O protagonista é Hamza (Mustafa Nadarević), poeta alcoólatra que prefere ficar em Sarajevo quando a mulher e a filha partem em busca de segurança. Mas ele não passa muito tempo sozinho. Logo se depara com dois garotos órfãos que sobreviveram a um massacre em sua aldeia e vieram para a cidade à procura de uma tia. Um tanto a contragosto no início, Hamza os acolhe e sai com eles em sua busca. Trata-se de um conto sobre compromisso e sentimento paternal que progridem com o passar dos dias. Um dos meninos, mudo e parcialmente surdo, recolhe um cão ferido na rua, assim duplicando o tema da compaixão.
As saídas do trio pelas ruas conturbadas de Sarajevo à cata de alimentos, de água e da tia das crianças, em meio aos ataques de morteiros e às balas de franco-atiradores, é um retrato muito vivo do cotidiano da cidade durante o cerco sérvio. Eles transitam por áreas arrasadas, com edificações em ruínas, paredes crivadas de balas, carcaças de veículos calcinados e trincheiras ainda por desfazer. Penetram também em alguns interiores completamente devastados por incêndios e bombardeios.
O panorama deprimente contrasta com a inocência dos meninos, mas é acentuado pela melancolia de Hamza. Nos seus frequentes devaneios, o poeta revive diálogos com a mulher (que não suporta) e a filha (que adora), bem como se vê enforcado em distintos cenários. Com a notícia de que a tia dos garotos foi para a Alemanha, Hamza faz uma tentativa desesperada de cruzar um setor especialmente perigoso para colocá-los numa área fronteiriça, de onde poderiam sair do país. A morte de Adis (Almedin Leleta), o menino menor, conclui o filme com uma nota especialmente trágica. Como Alemanha Ano Zero, O Círculo Perfeito começa e se encerra em cemitérios, fechando o círculo "perfeito" de um povo à mercê da morte.
A empatia do jornalista
O compadecimento com os órfãos da Bósnia volta a ocupar lugar central em Bem-vindo a Sarajevo (Welcome to Sarajevo), produção inglesa também de 1997. O diretor inglês Michael Winterbottom, praticante contumaz de um cinema ficcional alimentado por influxos documentais, rumou para a capital bósnia poucos meses depois de terminada a guerra. Foi autorizado a filmar ali durante três semanas, razão pela qual teve que complementar o material na Croácia e na Macedônia.
O roteiro de Winterbottom e Frank Cottrel Boyce descreve a aventura de um jornalista inglês que, durante a cobertura do sítio a Sarajevo, penaliza-se da situação das crianças mantidas num orfanato permanentemente ameaçado pelos ataques sérvios. Michael Henderson (Stephen Dillane) e a assistente social americana Nina (Marisa Tomei) organizam a perigosa retirada de um grupo de crianças rumo à Itália. Afeiçoado especialmente à pequena Emira (Emira Nusević), ele a leva consigo clandestinamente para a Inglaterra, onde vai adotá-la com o posterior consentimento da mãe.
Há uma ironia perceptível na forma como a montagem contrapõe o drama e a penúria da população aos privilégios reservados aos jornalistas (bebidas, música, descontração). Um repórter americano diletante (Woody Harrelson) contrasta com a seriedade do inglês Michael, embora também se mostre imprudentemente heroico ao se expor num tiroteio para recolher uma mulher ferida por ataque de franco-atiradores.
Winterbottom enfoca as ruínas de Sarajevo com relativa discrição, assim evitando a tal "visão turística". Afora inserções documentais, uma única sequência de deslocamento de Michael permite uma visão mais extensa do efeito da guerra sobre um conjunto de prédios. Ainda assim, os estragos materiais são flagrados nas bordas da tela em diversos momentos.
Seria o caso de perguntar que diferença se faz notar entre a maneira como um diretor bósnio filma as suas próprias ruínas e um cineasta inglês enfoca as ruínas de outro país. Evidentemente, havia em Michael Winterbottom uma empatia que norteava seu olhar estrangeiro, assim o aproximando do sentimento de Ademir Kenović. As condições para a pesquisa de locações, porém, diferem, uma vez que a produção inglesa teve menos tempo de autorização do que a equipe do filme bósnio para filmar em Sarajevo.
O fato de O Círculo Perfeito se passar entre moradores de Sarajevo faz com que a câmera permaneça sempre nas zonas mais desfiguradas da cidade, enquanto os jornalistas de Bem-vindo a Sarajevo circulam pelas ruas mas retornam sempre ao porto relativamente seguro do hotel. De qualquer forma, fica bem clara a intenção de Kenović em colocar as ruínas no centro de suas imagens, enquanto Winterbottom, no mais das vezes, relega as marcas da destruição às extremidades do quadro, quase como molduras. Há, quem sabe, um certo pudor nos enquadramentos, enquanto no filme bósnio o cenário aparece com mais explicitude, evocando a dor e a desorientação dos personagens.
Confronto físico com o cenário
O curta-metragem brasileiro Pedra Bruta (2009) é outro exemplo de empatia com um conflito alheio. O filme se desenvolve a partir de uma performance da pianista bósnia Amela Vučina e da atriz paulista Georgette Fadel numa pequena sala. Logo o cenário se transfere para a cidade de Mostar, na Bósnia e Herzegóvina, uma das mais atingidas na Guerra da Bósnia. As filmagens migram para o Super 8, e Georgette reaparece com a mesma roupa de cigana trilhando um terreno pedregoso com dificuldade e determinação.
Ela passa a atirar granadas imaginárias no ar enquanto o piano continua como trilha extradiegética, alternado com chamados de prece islâmica, ruídos de guerra, vozes, gritos e sinos. Em seguida, ela está ocupando os espaços interiores de edificações arruinadas pela guerra, sempre sustentando uma atitude desafiadora, que é acentuada por leve aceleração do movimento. A câmera subjetiva descreve paredes fendidas, telhados suprimidos e vidraças estilhaçadas.
A interação da performer com o cenário progride para um misto de dança e confronto físico, em que ela tateia superfícies furadas de balas, choca-se contra uma coluna e dá cambalhotas no chão. Por fim, de volta ao campo de pedras, ela tenta se defender de supostas minas terrestres, tiros e bombas, atirando-se ao solo numa atuação de grande risco corporal. A inscrição "Fuck the war!" num muro sintetiza a intenção da diretora Julia Zakia de combater a guerra com a arte.
Pedra Bruta nasceu do encontro casual de Julia, Georgette e Amela em Mostar, cidade onde nasceu a pianista. Amela havia trocado a Bósnia por Berlim em 1993, no auge da guerra. Em 2007, foi obrigada pelo governo alemão a deixar o país. Através da vigorosa performance de Georgette em meio a memórias sonoras e visuais da guerra, as três mulheres se engajam num libelo sem palavras que se refere ainda à condição cigana.
A obra cinematográfica de Julia Zakia é atravessada pela questão e a estética ciganas. Na Bósnia e Herzegóvina, a população cigana tem recenseamento incerto, mas era calculada em torno de 70.000 pessoas em 2017. Embora constituam a mais numerosa minoria étnica do país, os ciganos romani são os mais vulneráveis, expostos a preconceitos e crimes de ódio. A luta em que se empenha a atriz em seu figurino é, portanto, uma guerra não só contra o genocídio sérvio, mas também contra a discriminação dentro da própria Bósnia.
Pedra Bruta pode ser visto aqui.
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